Bruxa do 71 1974, enquanto os “porões da ditatura” do General Emílio Garrastazu Médici se enchiam de torturas e barbáries que não se pode esquecer e que pouco se fala, em uma pequena cidade do interior, longe da repressão militar, um fato inusitado, mas nem tão pouco reprimido:
Dona Flor, professora há muitos anos, pulso firme, forte, inclusive no peso, levava a turma de alunos a mão de ferro, disciplina rígida. Na escola rural, a sala contava com 30 alunos, da primeira à terceira séries. Alunos bem-comportados, verdadeiros soldadinhos de chumbos...
Mas nem tudo era felicidade, Dona Flor sofria de alergia crônica, o giz era seu principal algoz, e motivo de seu mau humor, também crônico...Era um ritual. Todos os dias, chegava à sala, preparava-se e quando anotava a primeira palavra no quadro-negro, imediatamente vinha-lhe o espirro. Atchim!!!
A sala aprendera direitinho o que ela mesmo ensinara. A cada espirro (atchim!), os alunos se levantavam e uníssonos, bradavam: “saúde Professora, Deus te crie”! E assim seguia, todos os dias, todos, em todos os espirros: Atchim!!! “saúde Professora, Deus te crie”!
Dona Flor não suportava mais tantos espirros, estava à beira do surto.
Outro dia a Professora chegou quieta, feição fechada, iniciou o ritual, foi passar o ponto no quadro, e... Atchim!!! Levantam todos os alunos, educados, uníssonos: “saúde Professora! Deus te cr....” Dona Flor nem deixou terminarem, surtou...
“Saúde Professora, coisa nenhuma! Não aguento mais, o que vocês estão pensando... a partir de agora, quando espirrar, se alguém falar ‘saúde professora’, eu vou mandar para fora da sala, nunca mais quero ouvir de vocês... e blá, blá, blá”... Os alunos quase desapareceram debaixo da carteira... Dona Flor era de cumprir as ameaças.
Neste dia marcante, Marcelinho, aluno “porreta” da sala, tinha faltado, teve de ir à cidade acompanhar a mãe, e nada soube do ocorrido.
Dia seguinte, chega D. Flor, o ritual se repete, os alunos quietos, apreensivos, a professora pega o giz, vira-se para o quadro, e ... Atchim!!!
O silêncio toma conta da sala, até que lá na última carteira, levanta só ele, o Marcelinho, o ausente do dia anterior, que enche o peito e solta a voz bem forte, num estridente e solo: “bruxa veia”! (Enquanto os alunos educadamente falavam “saúde professora, Deus te crie!”, Marcelinho sempre soltava o sonoro “bruxa veia”, fundindo-se todas as vozes, só que neste dia ele dançou...). O resto você já imagina...
1974, tempos difíceis de repressão, enquanto isso a “bruxa veia” continua até hoje torturando nos porões das lembranças, dos que eram rebeldes ou recalcados.
Lá se vai mais um outubro rosa, que começou com o dia do vendedor, passou pelo professor e termina com a caça as bruxas. Que Deus nos livre de um novembro cinza...
Boa Semana!
Alexandre Faria
Consultor em Gestão de Negócios
Viva mais intensamente! “Por que o mundo é um belo lugar pra se viver...”