A desigualdade social vai além da pobreza material. Ela se configura quando determinadas classes sociais também não tem acesso aos mesmos recursos culturais, sociais, físicos e intelectuais que outras. Como o combate à pobreza material depende somente de recursos financeiros, ela pode ser disseminada um pouco mais rapidamente, conforme a vontade política. Já a diminuição da desigualdade é bem mais demorada, exigindo o planejamento e implementação de uma política de estado.
A combinação entre o sistema político, o modelo de desenvolvimento econômico e a educação - ou a falta dela - adotada por um país são os motores geradores da disparidade social. Mesmo o Brasil já ocupando a sétima posição entre as nações mais desiguais do mundo, segundo o último relatório divulgado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), a constatação do problema se acentuou ainda mais durante a pandemia. E, como consequência da crise econômica, a tendência é que a desigualdade aumente no pós-coronavírus.
Apesar do diagnóstico incansavelmente repetido pela mídia, autoridades e cidadãos, além de ser atestado por indicadores da situação atual com alguma precisão, não vemos nenhuma ideia ou proposta de como resolver o assunto na sua raiz. Mesmo que aconteçam ações de ajuda paliativa e pontual com frequência, o máximo que se ouve é a declaração vaga de que uma vez superada a pandemia, a vida será diferente.
É importante observar que o modelo de desenvolvimento econômico de baixo valor agregado praticado somente é viável com a existência da oferta abundante de mão de obra barata. E isso só é possível de ser encontrado onde a miséria existe. Esse modelo é o oposto da situação nas sociedades mais evoluídas, onde os empregos são de melhor qualidade, se exige mais qualificação profissional e, dessa forma, paga-se maiores salários. Ou seja, nestes países, a sustentação da pobreza e da desigualdade não faz nenhum sentido.
No entanto, em nossa região uma mudança para diminuir esse quadro é um tema evitado pelas elites que comandam a economia nacional e, consequentemente, pelos sucessivos governos submissos aos seus interesses. Contudo, essa é uma visão equivocada, pois a melhoria do modelo de desenvolvimento econômico não significa de forma alguma a eliminação do modelo atual, mas sim a incorporação de atividades de maior valor agregado.
Violência sistêmica
Nos últimos anos são frequentes as notícias que relatam um aumento considerável do uso da violência dos governos contra as classes mais humildes da população, incluindo agressões contra crianças e jovens de baixa renda não envolvidas em qualquer ação ilegal. Normalmente, são apenas vítimas que acabam sendo contabilizadas como números, nas quais os governos não se interessam realmente, tratando-os como meros "acidentes".
Segundo o escritor Luis Fernando Veríssimo, na miséria "todas as emoções que um filho de rico tem em vídeo game, o filho de pobre tem ao vivo, olhando pela janela, só precisando se cuidar para não levar bala". Neste sentido, penso por que o cuidado das autoridades em "manter a paz" e procurar reprimir "ações ilegais" nas comunidades não é praticado com a mesma vontade em outros setores da população?
Ao final, os bandidos que mais prejuízo causam a sociedade, tais como alguns donos de empreiteiras, altos funcionários dos governos, políticos, doleiros, juízes corruptos e executivos, não moram nas comunidades.
Então, qual seria o real motivo de preocupação para se ater com o ambiente reinante nas comunidades? Os moradores desses locais são em sua imensa maioria (ou em sua totalidade) os "perdedores" na luta diária enfrentada para conseguir os recursos econômicos que precisam captar para a sua vida e da sua família.
Ou seja, o sistema político-social vigente permite, sem qualquer cuidado específico, que o resultado dessa disputa gere uma massa enorme de pessoas obrigadas fisicamente a deslocar sua moradia para lugares distantes dos centros produtivos. Assim, com pouca infraestrutura para levar a vida, sem contato com outros setores sociais e recebendo o salário mínimo, configura-se o "apartheid" do futuro, como sustentado por Zigmunt Bauman em suas magníficas teorias sociais.
Como a tecnologia da informação permite acessar o que acontece no mundo em tempo real, essa massa de pessoas vai paulatinamente acumulando informações que lhes colocam potencialmente em condições de reivindicar direitos. Mesmo que algumas vezes careçam os conhecimentos e a compreensão real de onde se encontram a origem dos seus problemas e quais são as alternativas para resolvê-los, existe sempre o risco de alguém lhes esclarecer esses pontos, criando situações que podem evoluir em reivindicações perigosas para o sistema instalado.
Nada disso é diferente das situações que ocorreram nos períodos que precederam as revoluções francesa, russa ou cubana, entre outras mais recentes. Daqui surge de forma implícita a resposta ao porquê da "preocupação" do sistema vigente em manter suas forças de lei "próximas" aos locais onde eventualmente as reivindicações mais importantes e estruturadas possam aparecer. O custo para manter essa ordem é um baixo nível de qualidade de vida dentro e fora das comunidades.
*Luis Piemonte é autor do livro "É possível construir uma sociedade mais justa", obra em que analisa o comportamento e o modelo de desenvolvimento econômico de três sociedades que conheceu profundamente: Argentina, Alemanha e Brasil. Dentro de uma carreira de quase cinquenta anos como executivo de multinacionais nas áreas de melhorias de desempenho e produtividade, além de vinte anos como professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Piemonte tem pesquisado nesse período todo questões sociais nos três países em que viveu, atuação que lhe conferiu conhecimento para debater e analisar o comportamento sócio-econômico-cultural nessas nações.