Chuteros: os contrabandistas de carros usados dos portos do Chile

Transporte é feito após compra legal de mercadoria no porto de Iquique, mas ilegal ao cruzar as fronteiras do Peru e da Bolívia


Destroem uma estrada e outra se abre de imediato. Na fronteira entre a Bolívia e o Chile existem ao menos 116 rotas ilegais por onde passa o contrabando de mercadorias de um país ao outro - principalmente carros usados vindos da Ásia transportados por chuteros, nome dado a quem dirige carros "chutos" (de segunda mão) entre as fronteiras.

"Em alguns lugares explodimos mesmo. Temos engenheiros que manejam o processo com dinamite para destruir as estradas. Em outros lugares, em que o terreno é mais plano, utilizamos tratores para fazer valas que impedem a passagem de um território a outro", disse o vice-ministro de Luta contra o contrabando da Bolívia, Gonzalo Rodríguez, ao jornal El Deber.

Tudo começa em Iquique, no norte do Chile: na zona franca da cidade, os contrabandistas fazem negócios, a princípio, formais. Adquirem todo tipo de mercadoria licitamente e instalam tudo em caminhões - existem sindicatos de transportes que fazem o trabalho.

Tudo se torna ilegal quando se cruza a fronteira, em que os chuteros tentam enganar as aduanas e entrar em territórios boliviano ou peruano de forma ilegal com os produtos. São carros usados, roupas, eletrodomésticos e peças automotivas. No ano passado, segundo o jornal El Deber, foram identificados 31 caminhos ilegais entre as fronteiras dos três países.

Cariquima, um povoado chileno muito perto da fronteira com a Bolívia, deveria ser um centro de passagem obrigatória, porque ali as autoridades exigem os papéis legais para cruzar a fronteira. No entanto, não é assim: a mercadoria passa geralmente por meio das plantações de quinoa entre os países e, depois, é embarcada em automóveis que já estão na espera do outro lado.

"Recebemos pelo transporte. Somos transportadores, e não chuteros. Deixamos a carga no lado chileno e entram os caminhões bolivianos para fazer o transporte. O que acontece depois não é responsabilidade nossa", diz Mario Aguero, do sindicato de transportadores de Iquique.

O delito se inicia no Chile com ações legais: o lícito se transforma na Bolívia e no Peru, tornando-se em ilegal. O contrabando tem demanda em várias cidades bolivianas e peruanas, como em zonas "vermelhas" dentro do departamento de Oruro, na Bolívia, chegando até outros lugares do continente, como na Argentina e no Brasil."

Nós fazemos um trabalho de checagem complexo dos produtos que recebemos para garantir que não há nada de contrabando", diz Flávio Santoro, diretor da leiloeira brasileira Sodré Santoro, cujo leilão de Curitiba é um dos maiores do país. "O transporte de carros de Iquique é conhecido no ramo: ele funciona faz tempo, mas atinge principalmente Peru e Bolívia", completa.

O presidente da Bolívia, Evo Morales, anunciou em março que teria "mão dura" contra os contrabandistas depois do assassinato de funcionários públicos que apoiavam uma operação contra veículos irregulares transportados do Chile para o país andino.

Segundo a imprensa local, em Chulumani, na Bolívia, há até um mercado de automóveis usados que atrai cidadãos de vários países: "Tem carros chutos para todos os lugares, estacionados ao gosto do cliente, com frequência com gente no interior deles checando as condições. Os vizinhos antigos nem se queixam mais: 'Assim que é'", diz um trecho de uma reportagem do jornal Pagina Siete.

Carros japoneses

Veículos feitos no Japão possuem uma forte demanda fora do país por sua reputação como carros duradouros. O fato de muitos motoristas japoneses serem inclinados a comprar novos modelos anualmente é outro motivo para que os consumidores estrangeiros busquem carros baratos na ilha asiática, segundo especialistas.

"No Japão é fácil encontrar carros com até 100 mil quilômetros. Fora de lá, as pessoas costumam dizer que os veículos japoneses podem ser usados até 400 mil quilômetros", conta Hérico Maehara, que viveu oito anos em Sapporo, cidade a 100 quilômetros de Tóquio, mas que voltou ao Brasil há alguns meses para casar com uma brasileira.

"O dinheiro é bom", conta Naim Arain, que comanda a Tokyo Ryutu Auction. Ele admite ter uma margem de lucro de cerca de 20% nos veículos usados vendidos ao exterior. Sua empresa tem 19 empregados e gera cerca de ¥700 mil por ano (R$ 2,1 milhões). Ele possui negócios na Tanzânia e nos Emirados Árabes, aonde viaja seis ou sete vezes por ano. De acordo com o jornal Japan Times, todos os donos de empresas de carros no Japão são casados com nativas e falam japonês e inglês fluentemente.

Na Bolívia, por exemplo, o negócio começou a encontrar barreiras: em janeiro de 2015, o governo decidiu proibir a importação de carros com mais de dois anos de uso. Antes, uma lei de 2009 já havia exigido que apenas veículos com menos de três anos de uso poderiam entrar no país - uma iniciativa que visava melhorar os índices de emissão de gás carbônico na atmosfera, além de equilibrar o trânsito nas principais cidades bolivianas.

O decreto foi fatal para uma indústria que se especializou em viajar até Iquique ou Arica, portos chilenos, para comprar os veículos oriundos do Japão e revendê-los na Bolívia. Em 2008, a zona franca de Iquique vendeu US$ 920 milhões em carros usados aos compradores bolivianos.