Julio Cortázar nasceu na Bélgica, mas se registrou como argentino e morreu como francês. Acadêmico, escritor e tradutor, ele só recusou a nacionalidade do país sul-americano que tanto amava em 1981, como uma forma de protesto ao regime militar de Leopoldo Galtieri. Três anos depois, em fevereiro de 1984, ele morreria em Paris -- outra cidade pela qual era encantado --, apagando uma das vozes mais originais e vanguardistas do século 20.
Entre as obras mestres de Cortázar, se destaca Rayuela (Jogo da Amarelinha, Civilização Brasileira, 1965), um romance publicado em 1963 que se tornou um clássico indispensável para todo amante de literatura, tanto por sua construção original e pelas mudanças na dinâmica entre o leitor e o livro, mas também pela história confusa do casal Horácio Oliveira e Lucía, ou "La Maga".
Com fortes influências surrealistas, há ao menos quatro formas de ler a obra: em ordem cronológica, do princípio ao fim, seguindo a ordem dos capítulos até o 56 -- proposto por Cortázar --, ou saltando entre capítulos de acordo com o guia entregue ao leitor no início do romance, ou como a pessoa quiser. Oliveira, segundo a revista de literatura uruguaia Brecha, se tornou um símbolo para os leitores jovens, românticos e idealistas.
Na Argentina, faculdades de psicologia a direito chegam a incluir a obra entre as primeiras leituras obrigatórias. Isso porque Cortázar joga o tempo todo como o tempo e com as fronteiras entre fantasia e realidade para construir um corpus literário imaginário e único.
Leitor voraz desde criança, quando devorou escritores europeus e anglo-saxões, ele também tinha entre seus autores favoritos alguns estadunidenses, franceses e, claro, argentinos. O principal deles era Edgar Allan Poe, a quem admitia ter devoção. Poe foi uma figura central no movimento chamado romantismo gótico, do qual Cortázar gostava dos contos fantasmagóricos e sobre vampiros -- o escritor estadunidense é considerado o criador do gênero conto, onde Cortázar também fez fama.
As melhores traduções de Poe para o espanhol foram feitas pelo próprio Cortázar, como O corvo (1845), A Queda da Casa de Usher (1839) e Os crimes da rua Morgue (1841).
Mas Cortázar também era fascinado pelo argentino Jorge Luis Borges, uma das vozes mais importantes da literatura do século 20. Ainda que não tivessem posições políticas parecidas, ambos se admiravam. A literatura de Borges é um labirinto perfeitamente desenhado em que cabe tudo: países que não existem, matemáticas imaginárias, fronteiras sem bordas entre o real e o fantástico, múltiplas línguas e temas de todas as cores e sabores. Entre os livros de cabeceira de Cortázar estavam Ficções (1944) e O Aleph (1949).
Ainda na língua espanhola, outra influência para Cortázar foi o poeta, ensaísta, tradutor e acadêmico espanhol Pedro Salinas, que teve um papel chave na introdução do francês Marcel Proust na cena da literatura hispano-americana. Salinas traduziu, por exemplo, o clássico Em busca do tempo perdido para o espanhol com a ajuda do escritor espanhol José Maria Quiroga durante os anos 1920. Conhecido hoje como parte da "geração de 1927", Salinas entendia e praticava sua poesia em três eixos: autenticidade, beleza e engenho. Além disso, colocava uma ênfase especial na exploração do amor em seus textos. Entre os preferidos do admirador argentino estavam o poema Cero, de 1949, e o ensaio La responsabilidad del escritor, de 1961.
Outro romântico que Cortázar leu muito durante toda a vida foi o inglês John Keats: morto aos 25 anos, quando se iniciava a década de 1920. O gosto pelos poemas dele foi herdado pelo escritor argentino por saber que Keats era um dos mestres de Borges -- a quem ele já considerava seu mestre. Melancólico e imaginário, o britânico abordava tanto temas mitológicos e medievais como o amor ideal.
Enfim, na França, o grande nome da prateleira de Cortázar era Jean Cocteau: escritor, pintor, desenhista, cineasta e até ocultista, ele exerceu toda sua capacidade criativa até morrer, em 1963, aos 74 anos. O livro Ópio: Diário de uma Desintoxicação (Brasiliense, 1985), sobre sua tentativa de se livrar do vício das drogas, era a decoração do criado-mudo do escritor argentino. Cocteau manteve relações apaixonadas com homens e mulheres, entre eles alguns famosos, como o ator francês Jean Marais -- com quem filmou, entre outras películas, La Belle et La Bête (A bela e a fera), em 1943 -- e Édouard Dermit, seu herdeiro e filho adotivo. Prolífico em vários gêneros, Cocteau deixou um legado literário vasto do qual é possível mencionar também o famoso romance Los chicos terribles, de 1929.
Para terminar, nada melhor do que ouvir o próprio Julio Cortázar declamar o capítulo 7 de Jogo da Amarelinha -- um pequeno texto em que ele reflete sobre um beijo. Para ouvir, clique aqui.