Nos 46 anos que viveu, um introspectivo inaudito e sem pudores Charles Baudelaire descreveu a realidade do seu tempo como ninguém, sem deixar de recorrer ao álcool e às drogas em excesso, além de ter pegado sífilis e de ter se enredado nas relações mais sórdidas da sociedade. No entanto, morreu sem o reconhecimento de ter sido o reinventor da cartografia poética das cidades e figura marcante das vanguardas literárias europeias.
Baudelaire nasceu 198 atrás, em abril de 1821, em Paris, filho de um homem de 60 anos e de uma mulher trinta anos mais nova. O pai, Joseph-François Baudelaire, morreu quando ele era uma criança e, depois disso, passou a viver mais com Mariette, a cuidadora e empregada de sua casa, do que com sua mãe, Caroline Dufaÿs, que se casou novamente pouco tempo depois com um membro do alto escalão do exército parisiense.
Ainda assim, sua casa manteve as ordens estabelecidas inicialmente pelo pai, um seminarista fortemente religioso, quando Jacques Aupick, o padrasto, colocou normas na família da mesma forma que comandava suas tropas. Por conta da posição do marido, Caroline e o filho mudaram de cidade várias vezes, geralmente de Paris para Lyon e vice-versa. Nessa época, o poeta já lia autores como Charles Sainte-Beuve, André Chenier e Alfred Musset.
Em 1840, Baudelaire entrou na Faculdade de Direito de Paris, no Quartier Latin, onde conheceu não apenas o mesmo Sainte-Beuve, mas ainda amigos de toda sua vida, como Gérard de Nerval, Théodore de Bacille e Honoré de Balzac. Foi quando adotou a vida boêmia: passou a frequentar os prostíbulos de Montmartre e os bares da capital francesa, onde se apaixonaria pela haitiana Jeanne Duval, dois anos depois. Em seus poemas, ela quase sempre aparece - seja como personagem direta ou no pano de fundo da cidade, e a descoberta de sua influência sobre a obra do poeta inspirou uma editora francesa a produzir fotolivros com raras imagens suas.
Em uma sociedade branca, Baudelaire afirmava aos amigos em cartas pessoas que lhe encantava o fato de Duval ser negra. Os dois mantiveram uma relação amorosa por 20 anos, nunca em um acordo fixo - muito porque ela, que era apelidada pelos amigos de Lemaire - era bissexual.
O crítico e editor espanhol Andreu Jaume escreveu um ensaio em 2017 afirmando que Baudelaire foi o "poeta maldito" por excelência, porque sempre encontrava a beleza dos seus poemas no submundo da cidade e nas coisas mais desprezadas pela sociedade. "Como poeta, ele atreveu a violar a melodia do alexandrino francês com todo o ruído da Paris do Segundo Império, preparando a poesia para seu desterro agônico no âmbito da prostituição, da publicidade e do jornalismo. Era um conquistador de lugares desconhecidos, do que não era bem visto", escreveu.
Outro crítico literário espanhol, Luis García Montero, publicou um prefácio de um dos livros dizendo que Baudelaire se interessava pelas "crianças de aparência horrorosa" e pelos "machos que não sabem andar e olham de um modo sombrio", e que em sua obra "nada se salva: a vileza se estendia pelos alimentos, nas tabernas, nos costumes e, por que não, nas almas".
Contra esse lugar no mundo estava Aupick, o padrasto que exigia que ele se comportasse como um burguês, expectativas que eram sempre reprimidas por ele com violência. Logo começou a escrever críticas literárias, musicais e artísticas se tornando, dentro de pouco tempo, uma das vozes mais importantes dos salões de discussão parisienses. Dizem os historiadores que a fama do pintor Èugene Delacroix se deve aos seus textos, assim como sua exaltação com as composições de Wagner e com os contos de Edgar Allan Poe -- influências decisivas para o único romance que escreveu, La Fanfarlo, de 1847.
Ainda que produzisse muito, Baudelaire teve pouco reconhecimento durante sua vida: envolvido em uma vida boêmia, os críticos diziam que seus poemas tinham "pouco refinamento". Em 1845, no auge dessas críticas, ele tentou se matar com um punhal - não conseguiu. Antes, enviou uma carta para Duval dizendo que não podia viver mais porque "o cansaço ao dormir e o cansaço ao acordar são insuportáveis". Com 24 anos, estava pobre, era alcoólico e tinha acabado de descobrir que fora contaminado com sífilis.
As Flores do Mal, seu livro mais famoso, foi publicado muito tempo depois, em 1857. Segundo Jaume, os poemas ali publicados são repletos de um romantismo obscuro, em que ele "mostra a si mesmo como um excluído da sociedade burguesa, que depois da Revolução Francesa só conseguiu se americanizar, levando até seus vícios mais profundos a um tédio insuportável".
A obra foi planejada a partir de peças que formam uma totalidade e que não devem ser lidas separadas, ainda que tampouco tenham uma ordem específica. A resposta da crítica a Flores do Mal foi devastadora, especialmente um texto publicado no jornal Le Figaro chamando-o de imoral - o livro foi censurado em algumas partes da França e provocou uma resposta angustiada de Baudelaire.
"Todos os imbecis da burguesia que pronunciam as palavras imoralidade e moralidade na arte me recordam a Louise Villedieu, uma prostituta de cinco francos que uma vez me acompanhou ao Louvre, onde ela nunca havia estado, e começou a tapar os olhos e a se envergonhar. Me puxando pela manga da camisa, perguntava, diante das estátuas e dos quadros imortais, como podiam se exibir publicamente semelhantes indecências".
Apesar do recebimento inicial, As Flores do Mal se converteu em uma das obras fundamentais da literatura universal, rompendo com o romantismo de Lord Byron, Mary Shelley, John Keats, Victor Hugo, Alfred de Vigny, Alfred de Musset e Gérard de Nerval para abrir caminho à descrição da modernidade, fundada, de acordo com ele, na crise espiritual, no narcisismo, na crítica social e no culturalismo cosmopolita. Hoje, muitos críticos literários dizem que Baudelaire é o poeta da modernidade, precisamente porque ele a descreveu como uma crise absoluta da humanidade.
Essa face do poeta fica mais clara com os poemas que foram publicados depois de sua morte, em 1869, onde mostrava dúvidas sobre os mitos da Revolução Francesa, como a "ditadura do politicamente correto". "Voltar à sua obra, agora que estamos no século XX e podemos vislumbrar qual vai ser o nosso horror, é um exercício de preparação imprescindível", finalizou Jaume.