“Foi uma longa jornada de pesquisa sobre a ação da toxina até o desenvolvimento da pomada. Há 20 anos conseguimos, pela primeira vez, isolar e fazer o sequenciamento da proteína mais importante do veneno da aranha-marrom. Com isso, estudamos os mecanismos de ação da toxina e desenvolvemos inibidores já patenteados que poderão ser usados em estudos de estrutura e função e eventualmente como terapia”, disse Denise Tambourgi, pesquisadora do Instituto Butantan, em palestra na FAPESP Week New York.
O encontro, que se realiza na City University of New York (CUNY) de 26 a 28 de novembro de 2018, reúne pesquisadores brasileiros e norte-americanos com o objetivo de estreitar parcerias em pesquisa.
Os ensaios clínicos para verificação da ação da pomada já começaram em Santa Catarina – estado brasileiro com grande ocorrência de picadas de aranha-marrom. “O ensaio clínico será realizado em 240 pessoas. Desse total, 120 vão receber placebo e os outros 120 serão tratados com a pomada. Assim é possível comparar os resultados”, disse Tambourgi, que também é uma das principais investigadoras do Centro de Toxinas, Resposta Imune e Sinalização Celular (CeTICS), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) da FAPESP.
A pomada é à base de tetraciclina, substância usada como antibiótico. “Utilizamos uma concentração abaixo do que seria microbicida, mas em dosagem capaz de modular a atividade da protease que está envolvida no processo de inflamação e de destruição do tecido. Como a tetraciclina já foi testada em vários ensaios clínicos, não foi necessário passar pelas fases de tolerância (fases I e II). Na verdade, estamos dando uma nova aplicação ao uso da substância”, disse.
Efeito cutâneo, efeito sistêmico
Além de causar a lesão cutânea – que pode levar meses até ser curada –, a picada da aranha-marrom também provoca, em alguns casos, efeitos sistêmicos, como hemólise, agregação plaquetária, inflamação e falência renal que pode levar ao óbito do paciente.
Há relatos de acidentes com Loxosceles nas Américas do Sul, Central e do Norte. Nos últimos anos, no entanto, ocorreram também casos de picada de aranha-marrom na Europa, com relatos de casos em países como Espanha, França, Portugal e Itália, país que registrou um caso de loxoscelismo fatal.
De acordo com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, em 2016 foram registrados 173.630 casos de acidentes com animais peçonhentos no Brasil, dos quais 7.441 foram por picadas de aranhas-marrom.
O loxoscelismo cutâneo ocorre em cerca de 80% dos casos. Menos frequentes e muito mais perigosos, os efeitos sistêmicos atingem cerca de 20% dos pacientes picados por aranha-marrom.
Como a picada da aranha-marrom é indolor e a reação local não se manifesta imediatamente, as vítimas só procuram ajuda quando a lesão na pele já está instalada. “A necrose dos tecidos não é apenas consequência do veneno, mas de uma cascata de reações do próprio organismo, acionadas pela principal proteína da toxina”, disse Tambourgi.
O Instituto Butantan já produz há alguns anos um soro para picadas de aranha-marrom, mas em quantidade limitada. “São aranhas pequenas, de no máximo 3 centímetros, das quais se extrai pouco veneno. São necessárias centenas de exemplares para se produzir o soro”, disse Tambourgi.
Reações secundárias
Os estudos para decifrar os principais componentes da toxina da aranha-marrom estão sendo conduzidos desde 1994. A equipe de pesquisadores do Instituto Butantan inseriu um gene da aranha na bactéria Escherichia coli, criando assim uma biofábrica da esfingomielinase D (SMase D), proteína que é o componente central da toxina.
“Nesse processo todo de pesquisas, descobrimos que o veneno da aranha-marrom pode causar reações secundárias, que são desencadeadas principalmente pela proteína. Costumo dizer que a toxina só dá o ‘start’ e a proteína altera as células. Depois ocorre uma desregulação do organismo que leva à produção de proteases – enzimas cuja função é quebrar as ligações peptídicas de outras proteínas. São essas proteases que devem ser inibidas pela pomada”, disse.
Dessa forma, a pomada atua no chamado efeito secundário. “Em modelos experimentais, tanto in vitro com célula da epiderme humana quanto em animais, foi possível reduzir cerca de 80% do tamanho da lesão”, disse.
O estudo coordenado por Tambourgi entendeu o mecanismo de ação do veneno lançado pela aranha-marrom e também a forma sistêmica e cutânea da doença. “A partir da construção do mecanismo que leva à lesão dermonecrótica, foi possível desenvolver a pomada. Porém, como o envenenamento é causado pelo que a proteína induz no organismo, estamos atacando as condições secundárias da toxina. Vamos ver qual será o resultado dos ensaios clínicos, estou confiante, pois os testes em cultura celular e modelo animal foram muito promissores”, disse.